João Martins
1 - INTRODUÇÃO
Nos próximos anos os principais investimentos em infraestruturas de transportes no nosso país serão o novo aeroporto de Lisboa (NAL) e a rede ferroviária de bitola europeia. Ora dos estudos e processos de decisão que têm vindo a público, relativos ao planeamento físico destes dois empreendimentos, têm resultado soluções absurdas, caras e nada optimizadas quanto às interfaces funcionais com outras infraestruturas de transportes. Senão vejamos:
A localização do NAL na Ota é uma solução má do ponto de vista operacional (basta ter em conta as limitações impostas pela serra de Montejunto e pela intensa ocupação humana existente a Sul), não assegura possibilidades de expansão para além da configuração base prevista, não dispõe da área necessária para empreendimentos complementares (plataforma logística intermodal, hotelaria, empreendimentos comerciais,...) e fica a uma distância considerável de Lisboa.
A definição da rede ferroviária de bitola europeia na região de Lisboa esteve num impasse. Efectivamente, não é fácil articular as linhas para o Porto, para Badajoz e para o Algarve, com o NAL localizado na Ota e com a nova estação central a construir. O governo optou finalmente por uma solução cara, que, para além de uma nova travessia do Tejo em Lisboa, envolve a construção de 30 km de túneis entre Lisboa e Castanheira do Ribatejo.
Outros empreendimentos significativos, tais como o novo terminal de contentores do porto de Lisboa e a via férrea de mercadorias entre Sines e Badajoz, têm sido pensados isoladamente e sem qualquer articulação com outras infraestruturas de transportes.
Esta situação, a manter-se, irá implicar investimentos e custos de exploração agravados, desperdícios e acréscimo de consumos energéticos e de emissão de poluentes, em relação a soluções devidamente optimizadas e articuladas. Isto é, em lugar de se tratar de investimentos tendentes a melhorar a competitividade do país, poderão mesmo contribuir para uma redução da competitividade e constituir uma hipoteca para o futuro.
2 - O NOVO AEROPORTO DE LISBOA (NAL) NA OTA
O processo de decisão que conduziu à localização do NAL na Ota foi completamente caricato, sendo confrangedora a leviandade manifestada pelos nossos decisores nas últimas décadas, conforme se resume a seguir.
Na década de 60 e inícios da década de 70, estudos competentes e completos apontavam inequivocamente para a margem sul do Tejo (Rio Frio/Poceirão) como o local mais adequado para o NAL.
Após o 25 de Abril de 1974, confrontado com a quebra na evolução da procura decorrente da crise petrolífera e da perda das colónias, o governo tomou a decisão correcta de suspender os estudos e os investimentos relativos ao NAL, instituindo paralelamente medidas cautelares para garantir a sua futura implantação na margem sul do Tejo.
Na década de 80, sendo de novo evidente o futuro esgotamento da Portela, o governo de Bloco Central retomou o processo do NAL. Nessa altura foi confrontado com a necessidade (desde sempre prevista) de desactivar a base aérea do Montijo e o campo de tiro de Alcochete, infra-estruturas consideradas importantes pela Força Aérea, que a tal se opôs, sugerindo em contrapartida a utilização da Ota, cuja base aérea poderia ser facilmente desactivada. O governo considerou então a Ota uma solução potencialmente adequada, que teria a vantagem de evitar os custos da substituição da base do Montijo e do campo de tiro e a oposição dos militares, e retomou os estudos relativos ao NAL nesses termos. Esqueceu-se, ou não se apercebeu, de um pequeno pormenor: a Força Aérea não se opunha à desactivação da Ota devido às suas más condições operacionais!
O governo de António Guterres finalizou o processo de escolha do local do NAL, favorável à Ota, com base unicamente num procedimento de avaliação ambiental inteiramente viciado: não foram considerados os aspectos operacionais e funcionais, as possibilidades de expansão, os investimentos e os custos de exploração, a inserção do NAL nas redes de transportes terrestres e o impacte regional e nacional do empreendimento. Nesse processo apenas foram tidos em conta aspectos relativos ao impacte local do empreendimento e, mesmo assim, a primeira versão dos estudos colocava Rio Frio e Ota em pé de igualdade. Talvez porque os decisores estivessem com receio de tomar uma decisão política com base num EIA inconclusivo, os resultados do estudo foram alterados ponderando apenas meia dúzia de descritores (todos relativos à fauna e à flora) favoráveis à Ota. Para além disso inseriu-se nas conclusões finais uma opinião gratuita e sem um qualquer fundamentação, afirmando que o Rio Frio não era ambientalmente sustentável. Essa frase matou definitivamente a questão. O facto da Ota implicar a execução de grandes aterros nas baixas aluvionares compressíveis das ribeiras da Ota e do Alvarinho (antigos paúis drenados e regularizados no último quartel do séc. XVIII) foi considerado quase irrelevante.
É inconcebível que decisões tão importantes para o país como a localização do NAL sejam tomadas deste modo. Efectivamente a Ota é um verdadeiro buraco, que devia ser rejeitado liminarmente como localização do NAL e nunca posto em pé de igualdade com o Rio Frio para efeitos de avaliação ambiental. No entanto, nada disto é estranho: a nossa administração pública tem a terrível tendência para fazer mau ou caro e, muitas vezes, mau e caro. A Ota corresponde a este último paradigma: mau e caro.
3 - LOCALIZAÇÃO PROPOSTA PARA O NAL
A área de implantação do NAL tem de satisfazer as seguintes condicionantes básicas: área suficiente em terra para a infra-estrutura básica, ampliações futuras e empreendimentos complementares; aproximações aeronáuticas livres de obstáculos; distância inferior a 50 km do centro de Lisboa.
Só existe uma zona que satisfaz estes requisitos: trata-se da área da margem Sul do Tejo limitada a Norte pela EN 119, a Sul pela EN 5 e via férrea, a Leste pela EN 10 e A13, e a Oeste pelas baixas aluvionares do rio das Enguias e seus afluentes (açude do Buraco, barragem da Venda Velha e barragem dos Vinte e Dois). Dentro desta vasta área, qualquer localização serve. No entanto, dispondo o Estado do campo de tiro de Alcochete e tendo este de ser desactivado, porque não localizar o NAL nos terrenos do campo de tiro? O custo e o impacte social das expropriações seriam drasticamente reduzidos. As acessibilidades rodoviárias ao NAL seriam facilmente asseguradas através de ligações à A12 e à A13.
A localização proposta para o NAL implica pois a desactivação da base aérea do Montijo e do campo de tiro de Alcochete. As valências da base aérea poderão ser transferidas para as restantes bases existentes na região de Lisboa (Granja do Marquês, Alverca e Ota) ou para a excelente e subutilizada base de Beja. Também não haverá grande dificuldade numa instalação alternativa do campo de tiro, algures no Alentejo.
Quanto à importante reserva natural e zona especial de protecção do estuário do Tejo, pode verificar-se que a localização proposta para o NAL viabiliza a manutenção de um corredor ecológico entre os estuários do Tejo e do Sado. Esse corredor, constituído pela área envolvente das zonas húmidas associadas ao rio das Enguias (vala de Rio Frio) e à ribª da Marateca, deveria ser objecto de medidas cautelares relativas à utilização do solo, mas sem inviabilizar o seu indispensável atravessamento por infraestruturas lineares.
4 - REDE FERROVIÁRIA DE BITOLA EUROPEIAA rede de CF de bitola europeia tem de servir as cidades de Lisboa e Porto, o novo aeroporto de Lisboa e as interligações com a rede espanhola definidas na Cimeira da Figueira da Foz: Badajoz (1ª Fase), Valença, Vilar Formoso e Ayamonte (2ª Fase). A localização do NAL no campo de tiro de Alcochete compagina-se bem com a instalação de um nó ferroviário interligando as linhas para Lisboa, para Norte, para Badajoz e para Sul.
A linha para a estação central de Lisboa, a localizar em Chelas conforme previsto pela RAVE, implica a execução de uma nova travessia ferroviária do Tejo entre Chelas e o Samouco, e deveria ser utilizada pelas navettes para o NAL (que poderiam ter uma paragem intermédia entre Montijo e Alcochete) e pelos comboios de longo curso de passageiros.
A linha para Badajoz deveria passar por Évora, conforme previsto pela RAVE, e ser utilizada por tráfego misto (mercadorias e passageiros), tal como em Espanha.
A linha para Norte deveria seguir pela margem esquerda do Tejo até às imediações de Almourol e ter uma estação na zona de Tomar/Entroncamento. Os custos de construção inerentes a este corredor seriam muito inferiores aos do corredor previsto pela RAVE, passando pela Ota e por Leiria. Esta linha poderia também ser utilizada por tráfego misto, pelo menos na secção NAL/Tomar. Leiria poderia ser compensada pela execução do IC9 com perfil de auto-estrada entre Fátima e Tomar.
A linha para Sul deveria seguir em direcção a Sines numa primeira fase, sendo posteriormente prolongada para o Algarve pelo corredor de S. Marcos da Serra. Na primeira fase (até Sines) seria utilizada apenas por mercadorias. A sua construção iria garantir a ligação de Sines a Espanha e à Europa através de uma linha de altas performances e bitola europeia, potenciando assim a dinâmica do porto de Sines, e contribuindo para a rentabilização da linha Lisboa/Badajoz. Além disso evitaria o absurdo investimento na nova linha de bitola ibérica Sines/Évora/Badajoz, presentemente em estudo.
A transferência modal, ou o intercâmbio de via, entre as redes de bitola europeia e de bitola ibérica, poderiam ser assegurados no Poceirão, em Vendas Novas, na zona de Tomar/Entroncamento, em Coimbra e no Porto.
5 - ACESSIBILIDADES AO BARREIROHá quem defenda a implantação da nova ponte ferroviária sobre o Tejo entre Chelas e Barreiro, tendo a RAVE chegado a desenvolver estudos para um absurdo traçado da linha de bitola europeia Lisboa/Porto atravessando o Tejo entre Chelas e Barreiro, contornando o Mar da Palha por Sudeste, e atravessando de novo o Tejo a Norte do Carregado, em direcção à Ota e a Leiria. Há mesmo quem defenda uma faraónica ponte entre Chelas e Barreiro com três modos de transporte: rodoviário, ferroviário pesado e metro ligeiro.
Discordo dessa localização por duas razões fundamentais: trata-se do local onde o estuário é mais largo, sendo pois provavelmente o local onde a ponte seria mais cara; trata-se também do local onde a ponte iria interferir mais com a grande bacia de manobra do porto de Lisboa, cerceando significativamente as suas potencialidades.
Por outro lado, uma nova ponte com amarração Norte na zona de Chelas deve ser exclusivamente ferroviária. Uma travessia rodoviária nesse local iria induzir tensões inadmissíveis na malha rodoviária urbana da cidade de Lisboa. Não é aconselhável continuar a fomentar o uso de viaturas particulares nas deslocações casa/trabalho entre as duas margens do Tejo.
O reforço das acessibilidades ao Barreiro poderia ser assegurado através de dois modos: prolongamento da rede de eléctricos rápidos (metro do Sul do Tejo) não só entre o Seixal e o Barreiro, mas também entre Barreiro/Montijo/Alcochete (interface com a via férrea Chelas/Montijo/NAL) e, eventualmente, entre Montijo e Pinhal Novo (aproveitando o corredor do ramal de CF desactivado); ligação rodoviária entre os acessos à ponte Vasco da Gama (nas imediações da área de serviço) e o Barreiro, passando pela base aérea do Montijo (a desactivar) e atravessando em ponte o esteiro do Montijo. A ponte a construir no esteiro do Montijo deveria pois servir o modo rodoviário e o metro ligeiro de superfície.
6 - NOVO TERMINAL DE CONTENTORES DO PORTO DE LISBOA
Os estudos anteriores para o novo terminal de contentores do porto de Lisboa apontavam para três localizações alternativas: Trafaria, Seixal e Montijo. A segunda foi abandonada pelas enormes dragagens necessárias e a terceira pela existência da base aérea do Montijo, cuja desactivação exigia.
Agora estão em cima da mesa duas localizações alternativas: Trafaria e Barreiro. Com a perspectiva da desactivação da base do Montijo, deveria ser de novo considerada a reutilização do seu espaço para o novo terminal de contentores.
Efectivamente, as acessibilidades rodo e ferroviárias seriam facilmente asseguradas com os esquemas atrás referidos. Haveria apenas que considerar a eventual execução em via quádrupla da linha de bitola europeia entre Samouco e o NAL, a fim de viabilizar a circulação das navettes para o NAL, das composições de passageiros de longo curso e das composições de mercadorias.
As dragagens e os terraplenos necessários seriam avultados, mas inferiores aos do Barreiro, enquanto a Trafaria, que tem a vantagem de apresentar elevadas profundidades naturais, é penalizada pelas difíceis e onerosas acessibilidades terrestres e pelos aspectos paisagísticos, já hoje prejudicados pelos incríveis silos aí existentes.
7 - CONCLUSÕES
Descrevi sucintamente um esquema coerente de ordenamento físico das principais infraestruturas de transportes a construir nos próximos anos (novo aeroporto de Lisboa e 1ª fase da rede ferroviária de bitola europeia) e sua articulação com outras infraestruturas de transportes na região de Lisboa, de modo a maximizar a sua eficiência económica.
Procurei deste modo dar pistas para os estudos a desenvolver e para a reavaliação de algumas opções, tão pouco sensatas me têm parecido as decisões relativas à localização do NAL na Ota, à linha de bitola ibérica entre Sines e Badajoz e à configuração da rede ferroviária de bitola europeia.
NB - Este artigo é a minha homenagem ao saudoso Engº Reis Borges, que nos deixou tão recente e repentinamente, e que tão crítico era da instalação do NAL na Ota.
Lisboa, Outubro de 2006
João Martins
(Engº Civil)
Fig. 1 - NAL. Localização e acessibilidades propostas
Fig. 2 - Rede CF de bitola europeia proposta (1ª fase)
Obs: Nas figuras foi utilizada a carta Michelin, a quem, com a devida vénia, se agradece.
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(1) Esta nota técnica foi elaborada por um amigo meu, com quem temos tido ocasião de colaborar desde longa data, e tal como eu, tem estado envolvido em múltiplos projectos de vias de comunicação. O nome de quem assina este texto, João Martins, é o pseudónimo que ele utiliza. Este documento que é a visão do autor, e não obviamente a minha, parece ser um contributo valioso para a questão do Novo Aeroporto de Lisboa. JPP